O Ataque de Noel

Noel permanece atual e ainda dialoga com movimentos de vanguarda literária

Por: João Jonas Veiga Sobral*

Em seu primeiro sucesso, com menos de 20 anos, Noel Rosa anunciou a nova ordem do samba. “Agora vou mudar minha conduta / Eu vou pra luta / Pois eu quero me aprumar”. O compositor satiriza o hino nacional, ao torná-lo base da melodia e cantar as mazelas sociais em tom zombeteiro.

Noel faz um registro dos reflexos da crise de 29 que abalou os EUA e chegou à sua Vila Isabel. A letra, estranha aos padrões da época, e seu manifesto social disfarçado em marchinha, contagiou o Rio. Com que Roupa? não é, no entanto, só o registro de uma época. É a síntese do olhar sensível do cronista para a vida e a malandragem carioca. “Seu português já deu o fora / Já foi-se embora / E levou meu capital / Abandonou quem tanto amou outrora / Foi no Adamastor pra Portugal / Pra se casar com uma cachopa”. Há um retrato malicioso do país e da consolidação da troca de favor, tratado com a picardia de poeta popular

As canções do poeta, branco letrado de classe média, conciliavam as vertentes do samba da época, a da malemolência falada e sincopada, feita para blocos urbanos carnavalescos, e a tradição da batucada de morro, dançada em rodas como a da Casa de Tia Ciata. De espírito conciliador, compreendia que o samba não pertencia a um grupo ou a outro, a um tipo social único nem a um espaço geográfico preciso:
“O samba na realidade / Não vem do morro, nem da cidade / E quem suportar uma paixão, / Sentirá que o samba então, nasce no coração.” 

“Batuque é um privilégio / Ninguém aprende samba no colégio../ Sambar é chorar de alegria / É sorrir de nostalgia / Dentro da melodia”.

Noel se defende de ataques à sua condição de bacharel e, sabedor do alcance do samba no rádio, evita associar o sambista à imagem de marginal. Buscava um diálogo fino entre artista e ouvinte. Sugeriu, por exemplo, a Wilson Batista que produzisse sambas sem o elogio clichê ao caráter marginal da malandragem. “Malandro é palavra derrotista / Que só serve pra tirar / Todo o valor do sambista”.

Duelo

Com Wilson travou um duelo musical (ver página 34) que lhe garantiu exercícios como Feitiço da Vila: “Quem nasce lá na Vila / Nem sequer vacila / Ao abraçar o samba / Que faz dançar os galhos, / Do arvoredo e faz a lua, / Nascer mais cedo.” A canção retoma sua concepção de valorizar o gênero aos olhos da elite. Com imagens próximas às da poesia, caras a esse segmento social, personifica (prosopopeia) elementos da natureza e provoca: “quem é bacharel não tem medo de bamba”. 

Há quem veja, na referência dessa música ao samba “sem farofa, sem vela e sem vintém”, uma alusão pejorativa à macumba. Com a polêmica, Noel depurou sua visão sobre o papel do sambista como divulgador da cultura local, vide Palpite Infeliz. “Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, / Oswaldo Cruz e Matriz / Que sempre souberam muito bem / Que a Vila não quer abafar ninguém, / Só quer mostrar que faz samba também”. Tempos depois, a paz foi selada entre eles, que chegaram a compor juntos. 

O confronto fortaleceu o olhar de Noel sobre suas ideias. Em X do Problema, ele discute a fidelidade à arte e a consciência de classe. “Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá / E felicidade maior neste mundo não há / Já fui convidada para ser estrela / Do nosso cinema / Ser estrela é bem fácil / Sair do Estácio é que é / O ‘x’ do problema”.

Modernismo

Aos poucos, Noel ganhou o respeito dos sambistas e o reconhecimento popular. Sem contato direto com movimentos de vanguarda, ele fez, na música, a aproximação da poesia com a linguagem coloquial. Na literatura, Oswald de Andrade fazia o mesmo, como em Pronominais (“Deixa disso meu camarada / Me dá um cigarro”), e assim Manuel Bandeira, como em Evocação do Recife: (“Vinha da língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ela é que fala gostoso o português do Brasil”). 

Noel foi propagador desses princípios caros ao Modernismo. Usava expressões da Lapa e da Penha e, em Não tem Tradução, mostrou-se consciente do debate metalinguístico: “Tudo aquilo que o malandro pronuncia / com voz macia / é brasileiro / Já passou de português”. Aqui, valoriza o samba e a variante popular do idioma. “O cinema falado é o grande culpado da transformação / Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez / Lá no morro, seu eu fizer uma falseta / A Risoleta desiste logo do francês e do inglês / A gíria que o nosso morro criou / Bem cedo a cidade aceitou e usou”.

Não tem Tradução opõe-se à invasão cultural e alfineta quem, seduzido pela moda importada, abre mão da linguagem brasileira. Na gradação “nosso morro criou”, “a cidade aceitou” e “deixou de sambar”, se vê preocupado com a “mania de exibição”. Tenta resgatar a linguagem cotidiana, a ideia do malandro artista e do samba sem tradução. Faz um registro da vida moderna e das tradições locais. 

Poema-piada

“Conversa de Botequim” é um poema-piada típico do Modernismo, rimando “vez” com número de telefone, usando elementos não poéticos (“Osório”, “escritório”, “guarda-chuva”, “bicheiro”) e descrevendo uma conversa coloquial bem ao gosto modernista: “Telefone ao menos uma vez / Para 34-4333 / E ordene ao seu Osório / Que me mande um guarda-chuva / Aqui pro nosso escritório”. 

A canção traz um isomorfismo impecável: verbo e som juntos em um mesmo processo conceitual e melódico. “Um pão bem quente com manteiga à beça / Um guardanapo e um copo d’água bem gelado”. Aos versos sincopados e quebrados devido às aliterações de p, d, b, e t juntam-se a rapidez promovida pelas aliterações de g e m.

Já em “Gago apaixonado”, há um prolongamento das palavras num ritmo insólito e divertido, próximo dos poemas-piadas modernistas: “Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago / Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago / Não po-posso com a cru-crueldade da saudade / Que que mal-maldade, vi-vivo sem afa-fago”. O poeta usa a gradação da gagueira à medida em que se mostra mais tenso e apaixonado. 

Como se vê nestas páginas, Noel foi assim, duro, terno, galhofo e elaborado. Num curto tempo, escreveu seu nome na MPB. Fez de seu lar e escritório o botequim e da vida cotidiana a mais pura poesia popular.

*João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e Orientação Educacional do Colégio Miguel de Cervantes e autor de Português Prático (Iglu). Caderno de revisão Gramatical – Editora Moderna. Guia do Estudante – Editora Abril